quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Sobre batalhas e invenções - 06/31

Mais um dos livros que entra naquele meu roll eterno de “quero ler mas fico enrolando”, até que um dia me dá uns cinco minutos e eu compro e leio direto, passando na frente da fila sem nem pensar muito no assunto. Foi assim com “A Invenção das Asas”, de Sue Monk Kidd, mesma autora de “A vida secreta das abelhas” que, by the way, eu também não li ainda.

Olha, eu não sou muito de procurar sinopses antes de pegar o livro de vez e quase nunca leio a contra-capa deles. Via de regra, acabo sempre começando a história sem saber muito o que esperar dela. Imaginava que falasse de escravidão, mas não sabia exatamente o que viria.

O que veio foi uma obra com poli narrativa, que varia entre uma escrava e sua ama: Hetty e Sarah. É aquele tipo de história sensacional que te atrai pelos nós na cabeça mesmo, não tanto pela paixão arrebatadora. Não terminei o livro encantada por ele, mas transformada com certeza.

Uma coisa que sempre me irrita (e eu já comentei sobre isso recentemente) é quando as pessoas vem com aquele papinho de desvalorizar uma batalha porque “existe outra (supostamente) maior”. Aquela velha história do COMO ASSIM VOCÊ SE PREOCUPA COM CACHORROS ABANDONADOS SE TEM CRIANÇA MORRENDO DE FOME, sabe? E Sue provoca o leitor exatamente através desse viés: ficamos todos muito irritados em lembrar de assuntos como a escravidão, possessos com as condições completamente sub-humanas, com os maus-tratos e com a falta de liberdade. Mas Sarah, que está do outro lado e ocupando uma posição bem superior na ~cadeia-alimentar~ não tem uma vida tão mais fácil assim. Ela é uma mulher, e naquele tempo, mulheres tinham pouquíssimos direitos.

A própria Hetty me irritou um pouco em diversos momentos por parecer se recusar a enxergar que a luta de Sarah por sua própria liberdade podia sim ser tão importante quanto a dela – e indo mais além: que uma luta poderia ter total influência na outra.

Sarah não tinha liberdade o suficiente para libertar a própria escrava. Não tinha liberdade para proclamar contra a escravidão. Se ela não lutasse a própria luta, a luta de buscar a própria voz, não teria voz o suficiente para lutar pela de Hetty. Todo mundo é capaz de concluir que a escravidão é um atentado gravíssimo contra a humanidade e nunca deveria ter ocorrido – mas nem por isso vamos sair apontando o dedo na cara das outras mulheres que viviam em melhores condições mas também precisavam buscar algo melhor.

As "batalhas para melhorar o mundo" não são antagônicas como algumas pessoas cismam em pontuar; são irmãs. Intrinsecamente, em muitos casos acabam dependendo umas das outras. Para mim, essa foi a reflexão que mais gritou na obra de Sue.

Se formos falar agora um pouquinho pelo lado poético-emotivo rapidinho ao invés do puramente reflexivo, ainda dá para puxar sardinha da autora por um dos títulos mais belos e significativos que já encontrei na literatura: as asas são a liberdade, e quando a gente não tem, a gente inventa do jeito que dá. Parece bobo, clichê, mas é muito maior que isso, se você pensar a fundo.  Uma passagem que me marcou bastante é a da mãe da Hetty, obviamente também escrava, que, na falta de maiores poderes para estragar a vida de seus patrões do jeito que eles estragavam a sua, cometia pequenos delitos que até poderiam lhe causar problemas, mas atazanava a vida deles também. Um roubo de carretel ali, um café queimado acolá e o que ela tinha a dizer era: - faço o que eu posso para encher o saco porque isso é tudo o que eu tenho.

Inventar. Inventar suas maneiras de se sentir um pouco melhor na sua própria condição. Seja colocando a cabeça no travesseiro e tentando fingir que ele é de penas de ganso, ou saindo na rua escondida depois do horário ou descosturando os botões da roupa da sinhá. Inventar as próprias asas, quando você não as tem. Esse livro me deu, em suma, o estalo de que o mundo tem muito mais inventores do que os catalogados, e de que, em muitos casos, as invenções eram muito mais difíceis que aviões, telefones e eletricidade.    

14 comentários:

  1. Como você é incrível, Ana!
    Eu amo quando você martela, porque assim, me leva a martelar também!
    Nem preciso dizer que fiquei querendo muito ler o livro né?!
    Inventar o que a gente não tem serve pra tanta coisa na vida, nessa vida nossa mesmo, mesmo que aparentemente a gente tenha tudo.

    Por textos incríveis como este que abandonei o meu blog, mas o seu não. <33

    ResponderExcluir
  2. Amiga, fiquei muito emocionada (?) com essa analogia das asas. Nunca tinha olhado o título desse livro por esse viés e achei muito bonito, embora triste. Daí tem aquela outra coisa que a gente sempre comenta que precisamos escolher as guerras que vamos travar, porque não dá pra lutar por tudo. E quando o mundo toma todas as armas, a gente inventa.
    te amo!
    beijos

    ResponderExcluir
  3. Oi, meu amor, cheguei cedo hoje. Eu discordo um pouco de você. Eu acho que a questão das mulheres é MUITÍSSIMO importante, tanto naquela época quanto hoje, mas a dos negros é diferente: uma coisa é não ter direitos, outra é nem ser considerado uma pessoa. Por isso eu entendo e concordo quando dizem que a questão racial é mais importante. A diferença é que uma luta não exclui a outra, as duas podem e devem acontecer ao mesmo tempo.

    Eu amei A Invenção das Asas. No começo fui a passos muuuuuito lentos e não engrenava de jeito nenhum, mas depois eu me apaixonei. É um livro importante demais.

    Te amo <3

    ResponderExcluir
  4. Sabe que volta e meia eu também faço isso? Deixo toda a minha pilha de "não lidos" de lado, passo na livraria, compro um livro, chego em casa e devoro ele. Adoro quando isso acontece. Na verdade, sinto falta de sentir essa empolgação com uma obra. Também não sou muito de ler as sinopses ou me prender muito aos detalhes. Gosto de ser surpreendida.

    Fiquei com a cabeça longe quando terminei de ler o texto, Ana. Suas palavras me fizeram viajar em vários pensamentos e abri a minha mente pra algumas coisas. Nunca tinha parado pra pensar sobre isso, mas realmente... Uma luta está intrinsecamente ligada à outra e não dá pra desmerecer uma que "parece menos importante". Todas as lutas são importantes.

    Tô acompanhando teu BEDA e lendo todos os posts, só estou meio sem criatividade até pra escrever os comentários. Meu clube. Mas parabéns, tô amando cada post! E boa sorte aí com a inspiração!

    Beijo!

    ResponderExcluir
  5. Como sempre, eu nunca tinha ouvido falar desse livro, mas fiquei emocionadine com o que você disse sobre ele, em especial sobre inventar asas (que título lindo, aliás). Me irrita muito quando as pessoas não conseguem ter empatia suficiente pra se sensibilizar com a causa do outro, ainda que a sua pareça muito maior. Não sei até que ponto eu ficaria ok em ler sobre isso sem agarrar um pouquinho de raiva da personagem que não consegue ver além dos próprios problemas, mas quem sabe, né?

    amo você <3

    ResponderExcluir
  6. Esse parece daqueles livros que nos fazem pensar demais e refletir sobre certas atitudes/situações que vem virado cotidianas. Fiquei com vontade de conhecer a história dessas duas mulheres. Acho legal esse lance de conhecer os dois lados da moeda, ao invés de comprar a ideia só de um.

    Nunca tinha ouvido falar, mas já anotei na lista do QUERO.


    Beijos.

    ResponderExcluir
  7. não li o post todo porque não gosto de ler nada antes do livro (toca aqui, concordo contigo! Sinopses revelam demais)
    Mas preciso comentar uma coisa: leia a vida secreta das abelhas. É lindo! E tem uma personagem específica no livro que eu tenho vontade de abraçar pra vida toda.
    Ok, desabafo feito. Bjs

    ResponderExcluir
  8. Nossa, amiga, que lindo. Nunca tinha pensado assim e anotei aqui no meu caderno de descobertas incríveis (sim), porque a vida pode ser bem mais fácil se a gente inventar asas que não temos para os problemas que temos (?). Te amo e você é maravilhosa.
    <3

    ResponderExcluir
  9. Nossa! Esse livro realmente é muito profundo e foi capaz de te inspirar a escrever este texto tão profundo quanto.

    Eu confesso que, às vezes, tendo a pensar da forma como você falou: "Por que cuidar de um cachorro se tem tanta criança abandonada por aí?", mas é fato que cada um tem uma causa pela qual lutar, e uma coisa não impede que se lute pela outra.

    Cara.. Quando você diz sobre "Inventar suas maneiras de se sentir um pouco melhor na sua própria condição", "Inventar as próprias asas, quando você não as tem", tocou fundo aqui. E é assim que eu me sinto quanto à música e à escrita no Blog e a leitura do seu e de alguns outros. Eles me fazem viver várias personagens diferentes em diferentes situações, mesmo que eu esteja dentro de uma sala, diante de uma tela de PC.

    Suas palavras têm esse poder.
    Parabéns!

    O coração do menino

    ResponderExcluir
  10. Fiquei arrepiada com teu texto, Analu! Já havia lido resenhas muito positivas sobre "A Vida Secreta das Abelhas" - que eu também não li - e totalmente desconhecia esse "A Invenção das Asas", mas fiquei na maior vontade de ler depois desse seu post.

    Na época da legalização do casamento gay nos EUA eu senti essa coisa, pq será que a gente não pode ter empatia pela causa do outro sem desmerecer ou dizer que tem coisa mais importante pra fazer? Uma luta não desmerece a outra, pelo amor! E, sério, teu parágrafo final até me deixou fora de rumo aqui, coisa mais inspirada. "Inventar as próprias asas, quando você não as tem". ♥

    Beijo, beijo!

    ResponderExcluir
  11. Que coisa linda Nalu! Eu já assisti o filme baseado nesse segundo livro e chorei horrores nele, agora quero ler esses dois pra sofrer e refletir e <3 essa moça é boa para titulos e o conteúdo pelo visto não deixa a desejar!

    Vai entrar pra listinha também!

    Beijo!

    ResponderExcluir
  12. Aff guria, eu já tô com uma pilha de livros pra ler, MAIS um punhado de seriados pra assistir, e agora serei obrigada a adicionar esse livro nos meus ~quero ler~ do skoob simplesmente porque eu preciso dele, sabe? Eu amo esses assuntos, e a forma como você falou deles me deu muita mas muita vontade de ler.
    Concordo contigo que uma luta não desmerece a outra e me desgraça a cabeça quando vejo alguém pensar e falar diferente.

    Beijos!

    ResponderExcluir
  13. Este Post foi indicado no meu Blog e pra muitos de meus amigos.
    Beijos =*

    O Coração do Menino

    ResponderExcluir
  14. Esse livro é amor, e achei muito digno quando você diz "É aquele tipo de história sensacional que te atrai pelos nós na cabeça mesmo, não tanto pela paixão arrebatadora." Eu sinto isso por algnus livros e nunca consigo explicar direito.
    Não desqualificando a luta da Sarah - inclusive achei genial narrar sob o ponta dela e da escrava -, mas também não julgo a Hetty por sua "falta de visão" sobre a luta da "dona", já que, do seu lugar na sociedade como escrava, a vida de uma mulher livre e branca deveria ser quase como ter o mundo. Mesmo a Sara sendo tão privada, a Hetty ainda tem menos direitos, e consequentemente menos chances de sair daquela situação, do que ela, então é até compreensível que isso a revolte. Mas concordo totalmente que uma luta é influenciada pela outra, e de todo modo mulheres sempre são mais fortes quando unidas.

    ResponderExcluir